sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O espetáculo e ou trabalho

Mercedes fala abundantemente antes de entrar no palco. Dentro do camarim de madeiras escuras, ela repete os mesmos movimentos a quatro anos. Se naquele pequeno lugar as paredes tivessem ouvidos, já lhe teriam caído luzes e espelhos sobre a cabeça raspada a pente quase zero. Dentro do cubículo ela escuta o ecoar de sua próprira voz. A rotina é o tema principal do seu monólogo sem platéia. Ela começa falando dos olhos que se abrem matando a menina que corria feliz nos campos verdes do inconsciente, segue pela luz dura que entra na janela de madeira dando formas estranhas as plantas que tanto lhe são companheiras, a parede descascada, o barulho da panela de pressão do vizinho, o cheiro da sua vó e o estardalhaço de buzinas saem ferozes das veias estufadas do pescoço moreno. O desabafo continua com os farelos de biscoitos sobre a mesa suja de café, o cheiro de louça de dias passados, os azulejos quebrados da pia, o banho com pouca água, a roupa desbotada, o bom dia sedutor do locutor da rádio, a lembrança do calor do ônibus, o calor do ônibus, os sapatos e homens sujos da fila do banco, o suor, o almoço e o desgosto. Enfim o café frio e a conta para dar esperança ao silêncio. Mas não, Mercedes não quer descanso. E enquanto coloca a meia calça vermelha, volta a incomodar o mofo com sua voz emocionada, a lembrança da recente traição do namorado com a sua irmã, o maldito telefone que não toca, as lindas montanhas, o mar, a praia de São Conrado, o amor pelo Rio, Leblon, Ipanema e o choro chega a Copacabana. É tocada a sineta, o espetáculo começa em alguns minutos. A maquiagem borrada pelas lágrimas não dá mais tempo de consertar. Já a peruca é colocada enquanto caminha para o palco. Se escutam os gritos viriz da pequena platéia. As cortinas se abrem e o sorriso nos lábios de Mercedes também.

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