Nas últimas noites o inverno ficou mais intenso. Sob as pedras alvinegras do calçadão, poças refletem faróis que se distorcem na água que cai em forma de fumaça. O vento massageia meu rosto com mãos delicadas. Uma noite diferente, ela não está tão escura, um filtro de sentimento sob meus olhos cria um tom lilás. O estranho é que as pessoas que passam por mim, não carregam esse tom em suas peles, ao contrário, possuem cores bem saturadas, contrastando muito com o mundo que o meu olho naquele momento enxerga. Isso ia me causando uma angústia enorme. Eu, os postes, as lixeiras, as moedas ao chão, tudo lilás menos as peles me cercam.
A interpretação dessa diferença fez com que o labirinto da minha realidade tomasse asas e voasse como uma águia à caça, para dentro daqueles contrastes que tanto me incomodavam. Minha vontade, em um acordo com a loucura, chegou à conclusão que, mediante um contrato assinado, eu poderia ficar até dois minutos dentro do mundo de qualquer pele e sangue que fugia ao meu mundo lilás. Assinei e senti um empurrão.
Agora, uma música que parecia ser Baden Powell e eu dividíamos o espaço do interior de um carro com um casal em frente ao posto 10 de Ipanema. O homem ao volante parecia ter seus trinta anos idade, uns cinqüenta e oito de responsabilidades, uns três anos de felicidade e uns setenta e oito de refeições. Já a mulher me confundiu quanto à sua idade, tinha os lábios bem esticados. Tomara que ela nunca leia isso, porque eu daria quarenta e dois anos de vida para ela. Mas saindo dos lábios e indo para os cabelos, eu pude perceber que ela tinha cinqüenta e cinco anos de corrida na estrada tortuosa da vaidade.
Passados já uns quarenta segundos sob aquele banco de couro gelado, como naqueles sonhos que nos vemos sem saída e sentimos o maçarico da adrenalina na pele, eu me desesperei. Por que seria um crime eu estar ali dentro? Não sei onde a minha realidade me enquadraria. Invasão de privacidade? Será? Além disso, o casal poderia parar o carro e, com o medo (o chaveiro de bolso do morador do Rio), gritar “Policia! Polícia! Um assalto!” A apreensão foi tomando conta de mim e do um minuto e trinta e sete segundos que se passavam. Foi quando a filha da vaidade resolveu soltar a primeira frase, fez críticas pequenas ao governo atual e falou bem de um candidato a prefeito da pós-cidade maravilhosa. Essas palavras chegavam confusas até meus ouvidos, ao acabar de falar ela se virou e passou a mão por dentro de mim, pegou uma bolsa, que eu sem perceber, estava sentado em cima. Indo de carona nas palavras da suposta esposa, o marido e motorista (ou o motorista e marido), resolveu soltar seu primeiro som, mas coincidiu com a junção do número dois e os dois zeros. E, como assinado no contrato, essa era a combinação para eu retornar ao meu mundo lilás.
Desorientado e assustado à beira da rua, eu gritava com minhas bocas internas: “Que experiência!” Queria eu voltar a poder fazê-la. O mundo continuava lilás como antes, dentre a praia e os prédios, carros e sapatos, mas também as diferenças continuavam. Até que uma pele coberta por cachos se destacou na minha visão, por oscilar entre as cores fortes e o lilás. Isso quase me paralisou. Queria eu visitar aquele mundo, então recorri à realidade e ela, muito coerente, negou. Falou-me para pedir ajuda à minha loucura, aceitei e fui à procura dela. Sem titubear ela me ofereceu novamente o contrato para a aventura dos dois minutos. Assinei e logo uma pedra portuguesa elevada e um tropeção me colocaram a caminhar ao lado da menina dos cachos.
Não foi preciso eu me esforçar para ver o que ela pensava, ela não precisava falar para eu escutar sua voz. O seu pensamento falava doce. Naquele momento ela se preocupava em se ambientar no século da caneta de pena, dos tílburis e dos braços e pernas cobertos com uma nostalgia de um tempo que ela parecia ter vivido. Ela descrevia até mesmo como seriam os bancos que descansavam os burgueses com suas bengalas impregnadas da cultura do além-mar. Quarenta segundos de devaneios e lábios, que mesmo sem se moverem, chamavam minha atenção como um prato de comida no sul da África. Naquele momento os segundos corriam e passavam a ter mais valor que ações de empresas de petróleo. A única saída para me manter naquele lar, com pernas e cachos que tanto me descansavam, era estender meu contrato com a loucura. Meu destino estava nas mãos da inimiga da coerência.
Enquanto me angustiava por uma resposta, o século passado, que ela me descrevia com imagens de sentimento, foi interrompido por três palavras reais e cruas: "topas um filme?" Eu me assustei. Tais palavras só poderiam ser para mim, visto que, além dos pingos da chuva, só tinha por ali eu e os seus lábios. Com essas palavras percebi que a loucura já tinha sentido meu desespero e passado de negociante a amiga, me concedeu a extensão do contrato para a eternidade.
Guilherme Ginane, 16/10/08
4 comentários:
Nível de compreensão desse texto:
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Malui.
entendimento proporcional a sensibilidade do malui, rs
Novo Autodesk da vida.
Bem bacana a construção e conclusão do texto!
Que isso Gui cada dia o que vc escreve fica lindo,e como sempre mexendo com os sentimentos mais escondidos que temos.amor,solidariedade,saudades.Enfim tudo que sentimos vc traduz muito bem.
Continue assim,que a vida sempre ira sorrir pr vc pois vc mereçe.
Na arquibancada da visa sempre existira uma pessoa que torçe por vc eu.
Parabens,
Beijos,
Mary
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