terça-feira, 22 de março de 2011

Findou o carnaval

Em memória de Eronides Araujo

João esperava o último ônibus que passava na Presidente Vargas em direção a Madureira. Era uma segunda feira de carnaval, foliões cabisbaixos com suas fantasias despedaçadas, caminhavam, cambaleavam e cantarolavam na curta calçada que dividia as duas pistas. Os barulhos dos assobios dos pneus do carro eram companheiros do pensamento triste e solitário do jovem. Quando o ônibus chegou, foi preciso que João se atirasse no meio da pista para que o motorista reduzisse e enfim parasse a alguns metros de distancia do ponto. O chiado do freio não foi capaz de acordar o palhaço e o pirata que dormiam um sono tranquilo. Nem mesmo o trocador, que se debruçava sobre a mesa fibra azul, esboçou qualquer reação. João ainda sobre o efeito de tanto álcool que bebera desde a manhã, deixou seu braço cair sobre o as costas magras do trocador. Assustado o homem de camisa azul, encardida e aberta até o meio do peito, achou que estivesse sendo assaltado. E com um reflexo de um gato segurou a camisa listrada de João, que deixou seu chapéu cair. Abaixando para pega-lo foi explicando com a voz embaralhada e carregada de medo.
- Queria somente pagar a passagem.
Irritadíssimo o trocador esbravejou de tal maneira que o motorista ameaçou parar o ônibus e chamar a polícia. Tudo aquilo ecoava como um sonho para o negro João. A cabeça dele estava mesmo em Bárbara, uma branquinha de Copacabana que ele conhecera em um baile de hip-hop perto de sua casa. Transaram e se encontraram algumas vezes no periodo, de mais ou menos, seis meses. Mas desde o ínicio do carnaval ela não olhava para a cara dele. Ela não quis nada com o negão, pensava ele do jeito carinhoso como ela o chamava. Ele percorrera sozinho todos os lugares onde ela poderia estar, a encontrou e nem um "oi" ela lhe ofereceu. Com a cabeça pra fora da janela do ônibus o vento lhe marcava as bochechas e jogava para atrás as lágrimas, lugar onde ele as sonhava em deixar pra sempre.  Pensava que naquele dia que já quase amanhecia, era o dia do desfile do Filhos do Pife, bloco que seu pai é baluarte e um dos fundadores. E foram variações desses pensamentos que o levaram até o ponto final. Lá teria ainda mais dois quarteirões até chegar e ver a luz da sua casa acessa. Nada inesperado, sabia que seu pai estaria acordado até a última escola de samba a desfilar. Ele temeu que o álcool empregnasse a pequena casa. Abriu a porta e correu direto para o banheiro, tomou um banho, se recompôs, e ai sim foi de toalha, percorrer o corredor para encarar o pai que sem tirar o olho da televisão o perguntou:
- O que aconteceu, João?
Com a voz tremula João disse que o ônibus havia demorado a passar, mas mau sabia ele, que Serafim, estivera no ponto a espera-lo até uma hora atrás. Ele vira inumeros ônibus vazios que vieram da Zona Sul.
Com a voz serena de sempre, sabia que o filho estava a mentir, e para não jogar farelo aos pássaros pretos da desconfiança, falou:
- Sei que foi aquela menina, estou te acompanhando. Tome cuidado, ela não serve pra você meu filho.
João calado fixou o olhar no terno cor de prata com uma brasão na manga esquerda que estava pendurado na estante cor de mogno.
O pai inesperadamente desligou a tv, levantou-se, beijou a cabeça do filho e disse para que amanhã ele não perdesse a hora para o desfile do bloco.
João agradeceu a Deus por não ter tomado uma grande bronca e foi pro quarto. Deitou a cabeça que girava como a terra ao redor do sol, só que o seu sol era Bárbara, linda, fantasiada de Branca de Neve a suar pelas pedras gastas do centro da cidade. Lembrou das palavras do pai e aquilo só lhe fazia sofrer mais ainda. O peito doia. E foi embalado nesses pensamentos que João só foi acordar quando escutou os Filhos do Pife já próximo a sua casa. Estranhou que o pai não havia o acordado. Foi até a sala ainda sonolento e o terno cor de prata ainda estava pendurado na porta do móvel de mógno. Seguiu a passos largos pelo pequeno corredor até chegar ao outro quarto. Ainda escuro o silêncio e a paz reinavam no comodo de paredes rachadas cor de pastel. João com muita sutileza tocou o braço direito de Serafim que não esboçou nenhuma reação. O filho muito carinhoso foi até o rosto, sentiu a barba arranhar a sua mão, assim como ele sentia quando criança. A pele muito gelada assustou João que jogou a cabeça com força em cima do peito cabeludo do pai. E nada. Com as duas mãos segurando forte os ombros largos de Serafim, João gritou:
- Acorda Pai!
Os olhos fechados continuaram e a boca semi aberta também.
João desesperado correu até a janela que dava de frente para rua que naquele exato momento o bloco se alinhara para entrar. Ele voltou ao quarto, foi ao pulso do pai e nada. Foi ao peito do pai e nada. João dobrou o joelho e desabou na beira da cama. O choro e os gritos se confundiam com o barulho da euforia dos foliões que se divertiam ao som das marchinhas embaladas por instrumentos de sopro. O filho foi até a sala, pegou o terno cor de prata e com dificuldade vestiu o pai com os membros já enrigecidos. Depois de te-lo vestido por completo, passou os braços por trás dos seus ombros e com força e choro foi levantado o velho. Queria que ele acompanhasse, nem que fosse pela última vez, o desfile do seu querido bloco. Os pés de Serafim iam arrastando tudo que estava no chão, João não se preocupava. Os dois abraçados, com muito esforço, chegaram até a janela de madeira que estava escancarada. As lágrimas de João encontravam labios sorridentes. O som do pife invadia a velha sala, o negro sentia novamente a quentura do corpo paterno. Labaredas de fogo cresciam no ritmo dos acordes mais graves a frente de uma multidão colorida. Pessoas passavam e cumprimentavam os dois. Músicas relembravam o passado de João e do seu velho pai.  Naquela hora o jovem não tinha olhos para humanos, ele via Deus e seu pai juntos, de terno cor de prata, dançando sobre labaredas e adereços, embalados pelo sol e pelo carnaval de rua de Madureira.

2 comentários:

Klaus Guerra disse...

Você está ficando muito bom , hein meu amigo.

abs

Octavio Peral disse...

Gostei muito desse gui, parece uma das histórias do machado...tem até alguma coisa que lembra o jeito de escrever dele também, mas ainda nao consegui definir o que é.
Excelente texto.
Abraço