terça-feira, 27 de março de 2012

Um suposto assassinato

Caminhando com os olhos perdidos nas gotas dos ar-condicionados da rua Sete de Setembro, topei com uma caixa pesada que estava quase escondida dentro de um buraco das antigas pedras portuguesas que ali ornam.
Ela, envolvida em papel pardo, estava limpa como se tivesse sido colocada há pouco tempo. Parecia ser o presente que eu aguardava de Deus desde que começara a trabalhar naquele lugar tão cheio de olhares maliciosos. Muitos deles de ternos pretos, sempre acompanhados por mulheres de pernas grossas onde o elástico da calcinha pequenina mandava o meu coração pra goela. 
Com a topada a caixa amassou, era dura e parecia pesada, meu pé doeu. Olhei pros lados para saber se aquilo era uma armadilha de algum dos pivetes que diariamente me encaravam na porta do McDonald’s.
Não, não tinha ninguém me olhando.
Era por volta de sete e meia da noite, as pessoas já começavam a dar lugar para o lixo nas esquinas.
Pensei na possibilidade de ser uma bomba, tive medo de morrer.
Tome vergonha, tu parece uma criancinha medrosa! falei comigo mesmo.
Loucura, será?  Pensei comigo novamente.
(minhas pernas trêmulas começam a dificultavam o meu andar)
O que será que está acontecendo comigo?
Eu me dividira em dois, um outro eu apareceu em minha frente, nariz com nariz, e os pés sincronizando os passos, um pra frente outro pra trás.
O senhor de calça desbotada e sem camisa que fechava a porta barulhenta de um bar me olhou desconfiado, abaixei a cabeça envergonhado.
Meu pensamento ecoava como gritos no beco transversal à rua que eu topei com a caixa. Meu outro rosto só fazia rir de desprezo do medo ao me ver naquela situação.
A sensação da falta da razão me trouxe um calor por todo corpo. Comecei a me tocar para ver se o corpo que andava pra frente estava ali presente, assim como fazemos logo quando acordamos de um pesadelo. Senti meu braço, rígido, tencionado, ele estava ali com toda normalidade. Não tive coragem para tocar esse outro eu que andava me zombando na minha frente.
Ouvi no fundo da rua uma voz dizendo, possivelmente era a voz do gordo que fechava a porta do bar:
Isso é tóxico, não tenho dúvidas!
Minhas pernas que não respondiam ao meu controle, me fizeram entrar em um outro beco de paralelepípedos, agora muito escuro. Ao final dele tinha uma placa em neon, Love Night.
Pessoas ainda passavam, com seus ternos sobre os ombros, namoradas penteadas no final do dia carregavam seus namorados e sorrisos que me doíam no peito, todos com a pressa de já ter em casa uma mesa posta. Eu era um fantasma em meio àquilo tudo. No beco escuro passei a não me ver mais espelhado. Todo meu pensamento que parecia sair em gritos, falava manso e ninguém mais me olhava como aquele velho do bar.
Caminhei em direção à porta do lugar que prometia amor. De longe dava pra sentir o cheiro forte de mofo que saia da porta vermelha entreaberta.
Parei em frente a um sobrado, a umas três casas antigas de distância daquela porta que havia me hipnotizado. Encostei num poste. Um cheiro de mijo se misturou ao de mofo deixando o clima ainda mais sombrio.
A voz do meu pensamento entrava naquela porta vermelha, lá talvez eu me curaria dessa sensação terrível que me assombrava.
A mochila pesada com livros que eu costumava comprar nos sebos do centro pesou em meus ombros, com a mão esquerda fui ajeitar a alça direita, foi aí que eu me dei conta de que estava carregando a caixa que eu havia chutado na rua Sete de Setembro. Novamente o calor da loucura tomou conta de mim, e se ali tivesse algo contagioso, ou alguma coisa que pudesse me incriminar? De novo o medo da morte. As questões começaram, a voz voltou a ecoar como grito, um jovem de camisa social branca bem ajeitada por dentro de uma calça de brim preta veio me perguntar se eu queria ajuda, e assustado eu disse que estava perdido. Perguntei onde eu poderia pegar um ônibus para o Madureira. Ele fez alguns sinais e logo se foi.
Minhas mãos voaram para rasgar aquele papel amarelo cor de merda. Sem jeito para abrir em pé, me ajoelhei no chão sujo, virei de costas pra rua fui tirando as inúmeras camadas que envolviam a caixa. Eu olhava para os lados com medo da polícia.
Depois de alguns minutos retirando papéis chego no papelão preto de uma caixa de sapato, cuidadosamente abro a tampa da caixa lacrada por fita crepe mal colada. Para minha surpresa vejo algumas fotos rasgadas, outras queimadas nas pontas, as observo muito, parecia ser de um casal, e por baixo delas um vestido sujo de sangue que envolvia uma arma. O fundo da caixa era todo forrado por  cartas de tarot. Desesperado eu a fecho, coloco-a ao lado dos meus joelhos e me levanto respirando fundo. Penso nos rostos das pessoas que estavam nas fotos e já não me lembro deles, era como se tivessem se velado em minha memória. O meu pensamento volta ser mudo. Uma brisa fresca com cheiro de mar vinda da praça XV toma meu corpo me tranquilizando. Ajeito novamente no ombro a alça da mochila, olho para o letreiro em neon (Love Night) e volto ao meu destino, o mesmo que aquele rapaz camisa social branca bem ajeitada por dentro de uma calça de brim me indicou com tanta paciência.

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