quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A eterna visita

Minha alma como um touro atingido, correndo sem rumo pelo estádio deserto. Eu me vendo costurado no pano vermelho nas mãos de um homem com armadura Flamenca.
Assim era o meu sentimento no dia que esperava o ônibus azul e amarelo que me levava diariamente para o colégio que ficava a alguns metros da minha casa, no Méier. A cada barulho de motor que chegava com a brisa leve que passava na deserta manhã de inverno, o meu pequeno coração palpitava em busca de socorro. Gritos de desespero saiam dos ventrículos, palavra que eu havia aprendido na última aula de ciências, pensei naqueles corpos dos livros que tinham veias vermelhas e artérias azuis que se uniam por um coração misterioso. As crianças iam saindo de suas casas e passavam por mim acompanhadas de seus pais, nos rostos, cabelos pentados, lábios sorridentes e olhos desatentos que não reparavam dentro dos meus os movimentos daquela sangrenta batalha. O ônibus e a chuva chegaram. O barulho do freio foi alto e a porta começou a se abrir lentamente. Logo se revelou o rosto de uma ajudante gorda e com olhar cruel. Ela olhou fundo nos meus olhos, fiquei com medo, fechei os meus e segurei alguns segundos até os abri-los novamente. Ela, mais próxima de mim, perguntou o que havia comigo. Foi aí que eu empurrei o porteiro que estava ao meu lado a pedido de minha mãe. O velhinho quase caiu e gritou, eu sabia que a gorda demoraria um século pra descer aqueles degraus e me pegar. Corri, a mochila balançava e batia forte na minha bunda, doia, mas eu não parava. Os pés molhados escorregavam nos paralelepipedos  desnivelados. Lembrei da casa da minha falecida vó, que há anos estava fechada, quem sabe eu me esconderia atrás do muro com lodo ou dentro do enorme matagal que crescera no quintal. Ali ninguém me acharia. Com essa direção minha corrida ficou mais rápida. No pedaço mais ingrime da ladeira eu me deixei, fui perto do tombo mas cheguei inteiro na casa cor de laranja. Não procurei olhar pra trás e ver se alguém estava próximo. Toquei muitas vezes a campainha sem esperanças que alguém abrisse. Enxarcado eu me preparei pra pular o muro, estava levantando a calça de tergal azul escura quando uma pequena luz se acendeu por entre os vidros canelados. A fechadura da porta de madeira se abriu lentamente e de dentro da casa, para o meu espanto, saiu minha vó morta. A chuva parecia aumentar e ela caminhava com seus pequenos passos até o portão de ferro. Os cabelos brancos não se molhavam. Quando chegou até mim, ainda por dentro da grade, ela estendeu a mão sobre minha cabeça e disse:
- Volte para aquele ônibus, mas não esqueça de, o mais rápido possível, voltar a me visitar.

Um comentário:

Edinho disse...

Guilherme Ginane,
a precisão e a eloquencia de sua narrativa me despertaram um desejo de rir e chorar ao mesmo tempo, uma profusão de sentimentos em tão breves palvaras. Brilhante crônica.
Admiro muito o seu talento.
Forte abraço.